4 de novembro de 2019

Doía

Doía tanto que eu nem sentia o cheiro de terra molhada quando a chuva caia. Doía tanto que eu nem reparava no nascer do sol de todo dia.

Doía tanto que me esqueci de contemplar a beleza do meu próprio corpo, de aproveitar os sabores de conviver com o outro. Doía tanto que todo dia era só mais um dia.

Doía tanto e eu já não enxergava nada, me afogando as mágoas de ideias, de pessoas e de águas passadas. Enquanto doía e eu berrava por dentro, no silêncio do sofrimento, a primavera passou.

Doía tanto que não aproveitei as noites frias, para vestir tocas, casacos e curtir a fumaça que saía da boca. Doía tanto que não aproveitei as noites gostosas de sono, de chocolate quente, de epifanias e de silêncio ardente. Enquanto doía e eu me entregava aos sentimentos ruins, o inverno passou.

Doía tanto que não aproveitei as rápidas e intensas águas do céu para tomar banho de chuva. Doía tanto que eu me preocupava em mostrar ao mundo como estava triste e, mediante o tempo que não para, perdi o sol, a praia, as águas, o horizontes, o céu azul, as trombas d'água, a cachoeira e tudo o que acompanhava. Enquanto doía, o verão passou.

Enquanto doía o tempo passava. Enquanto eu parava a vida não parava. Enquanto doía eu me enganava, alimentando uma dor que não existia. Enquanto eu sofria, não aprendia nada. Enquanto eu me diminuía a energia baixava. Enquanto eu não via, o outono passou. O vento levou. O amor se calou. Outra chegou.

Enquanto doía eu perdia o presente e hoje o maior presente é saber onde estou, enquanto eu passo a vida passo por mim e sei exatamente aonde vou. Enquanto doía me perdi, mas encontrei tudo que eu sempre busquei. Ser completo pede que abramos mão daquilo que imaginávamos nos completar.

Enquanto doía, eu acreditava que doía por ter sido arrancado, mas eram apenas minhas mãos queimando de tanto segurar o que não quis ficar. Doía tanto que eu acreditei na dor e perdi verão, outono, inverno, primavera.

Enquanto eu acreditava na dor, perdi as chuvas, o sol se pondo e chegando, perdi as cachoeiras revigorando, perdi a beleza das praias e o barulho  do mar. E quanto mais eu perdia, mas me preparava para chegar, no auge de mim mesmo.

Enquanto eu era, eu fui. Agora eu sou e não sou mais. Enquanto doía eu acreditava na dor. Agora a vida me ensinou que eu acreditava em mim mesmo para doer, mas agora acredito em mim mesmo para conseguir ver, que o que passou, foi porque eu deixei passar. O que perdi foi a necessidade de tentar me completar, sem precisar.

Doía tanto que eu nem sentia o cheiro de terra molhada quando a chuva caia. Doía tanto que eu nem reparava no nascer do sol de todo dia. Mas hoje não dói mais, pois sou o meio próprio farol, Deus de mim mesmo, completo e firme.

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